terça-feira, 26 de novembro de 2019

TAROT DE MARSELHA E YABÁS – UMA POSSÍVEL RELAÇÃO


TAROT DE MARSELHA E YABÁS – UMA POSSÍVEL RELAÇÃO
Beatriz Mazzini
Para entender como as yabás estão presentes nos arquétipos dos arcanos maiores do tarot de Maselha e vice e versa, é necessário traçar um raciocínio inicial que demonstra onde se inaugura essa percepção. De acordo com C.G. Jung, nossa psique não se resume ao que temos de bagagem individual, como são os acontecimentos e experiências de nossas vidas e nossa narrativa e trajetória enquanto indivíduos. Existe, para além da psiquê em cada ser, um outro compartimento onde todos os registros da humanidade se aglutinam de forma residual e se manifestam através da simbologia, atualizando-se com a repetição. É o inconsciente coletivo, potencial compartilhado por toda a humanidade e que se concretiza no tarot através da sincronicidade. Sincronicidade, para todos os efeitos, é um método pelo qual o inconsciente direciona uma energia para trazer a tona uma percepção e conduzir a um insight em busca da individuação de cada ser.
Isto posto, é salutar reconhecer a simbologia dos arcanos como potencial ilimitado, no qual é possível, através de associações, transcender e englobar deidades do panteão africano como integrativas do ser humano e sua psique. Sendo assim, passamos à observação das relações traçadas abaixo entre as cartas e as deusas.
A IMPERATRIZ – YEMANJA
A Imperatriz é o arcano número três do tarot, o que por si só já denota e intui um principio gerador, no qual 1 +1 é igual a um terceiro. Esse princípio gerador é a característica fundamental de Yemanjá, conhecida por ser a sereia detentora de todo o poder criativo e mãe de todos os orís.


O arquétipo de rainha da imperatriz manifesta a mesma nobreza coroada da qual faz jus Yemanjá, cujo consorte é Oxalá – rei de todos os orixás. Do alto de sua posição, ambas dão a luz à todos os heróis e heroínas, representam sua profundidade inesgotável de fecundidade e se encontram no princípio marítimo feminino de onde toda a vida surge.
Ligada também ao sustento e a prosperidade, de um lado idolatrada pelos pescadores que do mar retiram redes fartas de peixes por ela cedidos, de outro fornecendo à humanidade o sustentáculo inicial da vida: o aleitamento materno, essa mãe é quem gera junto a nós a fartura, a abundância e a própria vida – conceito que só se sustenta em progressão.
Uma mulher benevolente cuja autoridade jamais é questionada. É sentimentalismo e serenidade vertendo da mesma fonte. Seu maior atributo é a força do amor que multiplica, constrói, prospera e manifesta a partir do zero. É, ainda, um poderio direcionado ao concreto, palpável, pois a força do parto empurra sua criação para a terra, onde ela se manifesta e nutre para que tudo abunde. É a matriarca que sabe onde as coisas estão e em que horário e dia cada atividade deve ser realizada, visando sempre a ordem e o progresso de seus rebentos e a sustentação da estrutura basal de todo o equilíbrio.
Uma gota d’água da Imperatriz contém todo o oceano. Uma centelha, uma fagulha de Yemanjá contém todo o universo de um novo ser humano a ser gerado. Sua caridade é expandida de modo geométrico e sem barreiras e toda sua energia pode se concentrar em transformar o círculo em manifestações do universo. O óvulo se transforma em barriga e assim surge um novo ser. O potencial criativo se aglutina na Imperatriz e ela gera o produto de si mesma, de sua corrente canalizadora divina e fecunda, como uma verdadeira sereia cuja sexualidade está acima da humana. Trazem dentro de si o mesmo fragmento do Deus ilimitado que, nesse momento, é Deusa.
A ESTRELA – OXUM
É bastante óbvia a aderência entre ambos os arquétipos Oxum e Estrela em um primeiro plano pela manifestação fluvial de suas energias. A mulher representada na carta do tarot de Marselha está literalmente na beira do rio, como descrevem diversos cânticos da Yabá. Uma carta essencialmente feminina, na qual sua figura tem nas mãos o derramamento e o fluxo de suas emoções sem contudo perder o olhar de calmaria e o apoio em sua perna esquerda, seu lado mulher.


Esta condutividade se encarrega de nos guiar (as estrelas sempre foram os guias daqueles que navegam) à pureza, ao brilho próprio e à sensibilidade. Esplendorosamente serena, fértil, é uma veia pulsante de compaixão e placidez. Como a orixá, é quem passa pelas pedras sem se reter ou se demorar, trazendo para seus regidos um forte traço de adaptabilidade. O amarelo de Oxum é presente nos grãos de areia que cingem o rio, frutificando brotos por onde passa. Ainda assim, o céu é notívago e mostra a capacidade do brilho romper a escuridão.
Interessante ressaltar que a Estrela sobreveio à Torre, sinônimo de ruptura, perda ou dor. É esperança e acolhimento se manifestando, nossa essência benevolente que sobrevive à tragédia, a sorte de ter reencontrado o colo e o seio do amor incondicional do destino na forma de uma mãe/mulher aconchegante e hospitaleira.
Como astro, sabemos que antigamente o planeta Vênus era conhecido como estrela da manhã. Tudo se intercala quando identificamos que esse planeta, interpretado como estrela e tão fêmeo é, também, Afrodite, a deusa da beleza e do amor, assim como nossa mãe Oxum. Sabe-se através de diversos itans contados ao longo da tradição oral e, hoje em dia, escrito, que Oxum sempre foi a menina mais bela do panteão africano.
A FORÇA – IANSÃ
Consorte de Xangô e Ogum, a justiça e a lei, Iansã é a personificação da força guerreira. Seu arquétipo sempre nos remete a uma mulher destemida, ou seja, completamente isenta de fobias, sempre determinada e impetuosa, regendo intensamente a força da tempestade, ventania, raios e trovões, de forma energética e arrojada. É uma mulher que domina a natureza e a tem sob seu controle, sem em nenhum momento se mostrar como submissa ou subserviente.
Da mesma maneira, o arcano XI de nosso tarot performa energia congênere ao ser ilustrado pela mulher que doma o leão, segurando suas mandíbulas de modo a submetê-lo, de forma serena e posicionada em pé com tranquilidade. Talvez, o grande lampejo feminino na carta da força é o mesmo que Iansã esclarece: a força bestial e inferior não é dominada de outra forma senão com sua pulsão contrária, a calmaria, a segurança e o domínio pacífico da inferioridade.


Iansã – a Força – tem a coragem sob suas mãos de forma despreocupada e impassível, sob o símbolo do leão, imagem que carrega a idéia da besta voraz, os instintos violentos contidos em cada ser humano. Isso não significa que Iansã, ou a Força, seja flácida, frouxa, apática ou indolente. É o exato oposto: o equilíbrio das duas medidas aparentemente opostas (pacifismo e ação) resulta em positividade, movimento, direcionamento e evolução.
A energia leonina e solar costuma nos aludir a um lado masculino da psique, da mesma forma que contrariamente a lua nos alude ao feminino. Esse rompante tem seu lado positivo, oposto à bestialidade, como tudo que está contido na dualidade. É a criação da luz através da combustão, faísca que se transforma em rojão rompendo a escuridão. Em suma, é a energia feminina em perfeita consonância com a determinação somada a um resultado, ou seja, a Força em si.
A PAPISA/SACERDOTISA – NANÃ
A sabedoria internalizada e intuitiva que promove alterações internas cujo domínio está sob o arcano da Papisa só poderia ser integrada e caber na figura de Nanã, a mais velha e sábia de todas as yabás. Esse arquétipo é muito mais sensível às forças religiosas e espirituais, afastando-se mais do concreto regido pela Imperatriz/Yemanjá.
Nesse momento, as forças psíquicas femininas estão voltadas para o sagrado e para o domínio dos mundos além do material, os conhecimentos a respeito da vida e da morte e das dimensões internas do ser. A paciência, a observação e a sapiência atemporal que penetra o além e o antes estão contidas Nela.


Símbolo de iniciação e revelação mística, Nanã é a senhora do barro, das profundezas lamacentas e das águas ancestrais onde estão escondidos os mistérios da criação, sustentação e destruição que regem o universo. Como a Papisa, carrega em si a bagagem da gnose, da piedade dos anciãos iluminados e da santidade. Seu terreno de atuação é intuitivo, mesclando a completa instrução com a mais sincera humildade. O entendimento e a compreensão adquiridos nessa faceta da jornada penetram um ângulo de beatitude e bem-aventurança com a clariaudiência da voz interior mais íntima.
Nanã é o estanque da fertilidade, a menopausa feminina, que representa a superação da fase sexual e reprodutiva para o recolhimento ascético rodeado pela experiência. Essa fase é a nobre mulher coroada de Marselha, vestida como majestade e sob a qual repousa um livro aberto cujo conhecimento não está escuso, ainda que sob seu poder.
CONCLUSÃO
Os elementos arquetípicos presentes no tarot de Marselha não encontram dificuldades para recepcionar as energias femininas das orixás do panteão africano conhecidas como yabás. Muitas características em comum permeiam a jornada da humanidade independentemente da representação material imagética que se façam delas. Nesse caso, defendemos a ideia de que o inconsciente coletivo se manifesta nas culturas de formas diferentes mas que ao mesmo tempo são paralelas e similares. Assim, podemos concluir que as forças convergem para um mesmo entendimento e integração da psique, através dos insights que nos levam a progredir no caminho da individuação como seres em evolução.
REFERÊNCIAS
http://colegiodeumbanda.com.br/site/orixas/



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