TAROT DE MARSELHA E YABÁS – UMA POSSÍVEL RELAÇÃO
Beatriz Mazzini
Para entender como
as yabás estão presentes nos arquétipos dos arcanos maiores do
tarot de Maselha e vice e versa, é necessário traçar um raciocínio
inicial que demonstra onde se inaugura essa percepção. De acordo
com C.G. Jung, nossa psique não se resume ao que temos de bagagem
individual, como são os acontecimentos e experiências de nossas
vidas e nossa narrativa e trajetória enquanto indivíduos. Existe,
para além da psiquê em cada ser, um outro compartimento onde todos
os registros da humanidade se aglutinam de forma residual e se
manifestam através da simbologia, atualizando-se com a repetição.
É o inconsciente coletivo, potencial
compartilhado por toda a humanidade e que se concretiza no tarot
através da sincronicidade. Sincronicidade, para todos os
efeitos, é um método pelo qual o inconsciente direciona uma energia
para trazer a tona uma percepção e conduzir a um insight em
busca da individuação de cada ser.
Isto posto, é
salutar reconhecer a simbologia dos arcanos como potencial ilimitado,
no qual é possível, através de associações, transcender e
englobar deidades do panteão africano como integrativas do ser
humano e sua psique. Sendo assim, passamos à observação das
relações traçadas abaixo entre as cartas e as deusas.
A
IMPERATRIZ – YEMANJA
A Imperatriz é o
arcano número três do tarot, o que por si só já denota e intui um
principio gerador, no qual 1 +1 é igual a um terceiro. Esse
princípio gerador é a característica fundamental de Yemanjá,
conhecida por ser a sereia detentora de todo o poder criativo e mãe
de todos os orís.
O arquétipo de rainha da imperatriz manifesta a mesma nobreza
coroada da qual faz jus Yemanjá, cujo consorte é Oxalá – rei de
todos os orixás. Do alto de sua posição, ambas dão a luz à todos
os heróis e heroínas, representam sua profundidade inesgotável de
fecundidade e se encontram no princípio marítimo feminino de onde
toda a vida surge.
Ligada também ao
sustento e a prosperidade, de um lado idolatrada pelos pescadores que
do mar retiram redes fartas de peixes por ela cedidos, de outro
fornecendo à humanidade o sustentáculo inicial da vida: o
aleitamento materno, essa mãe é quem gera junto a nós a fartura, a
abundância e a própria vida – conceito que só se sustenta em
progressão.
Uma mulher
benevolente cuja autoridade jamais é questionada. É sentimentalismo
e serenidade vertendo da mesma fonte. Seu maior atributo é a força
do amor que multiplica, constrói, prospera e manifesta a partir do
zero. É, ainda, um poderio direcionado ao concreto, palpável, pois
a força do parto empurra sua criação para a terra, onde ela se
manifesta e nutre para que tudo abunde. É a matriarca que sabe onde
as coisas estão e em que horário e dia cada atividade deve ser
realizada, visando sempre a ordem e o progresso de seus rebentos e a
sustentação da estrutura basal de todo o equilíbrio.
Uma gota d’água
da Imperatriz contém todo o oceano. Uma centelha, uma fagulha de
Yemanjá contém todo o universo de um novo ser humano a ser gerado.
Sua caridade é expandida de modo geométrico e sem barreiras e toda
sua energia pode se concentrar em transformar o círculo em
manifestações do universo. O óvulo se transforma em barriga e
assim surge um novo ser. O potencial criativo se aglutina na
Imperatriz e ela gera o produto de si mesma, de sua corrente
canalizadora divina e fecunda, como uma verdadeira sereia cuja
sexualidade está acima da humana. Trazem dentro de si o mesmo
fragmento do Deus ilimitado que, nesse momento, é Deusa.
A
ESTRELA – OXUM
É bastante óbvia
a aderência entre ambos os arquétipos Oxum e Estrela em um primeiro
plano pela manifestação fluvial de suas energias. A mulher
representada na carta do tarot de Marselha está literalmente na
beira do rio, como descrevem diversos cânticos da Yabá. Uma carta
essencialmente feminina, na qual sua figura tem nas mãos o
derramamento e o fluxo de suas emoções sem contudo perder o olhar
de calmaria e o apoio em sua perna esquerda, seu lado mulher.
Esta condutividade
se encarrega de nos guiar (as estrelas sempre foram os guias daqueles
que navegam) à pureza, ao brilho próprio e à sensibilidade.
Esplendorosamente serena, fértil, é uma veia pulsante de compaixão
e placidez. Como a orixá, é quem passa pelas pedras sem se reter ou
se demorar, trazendo para seus regidos um forte traço de
adaptabilidade. O amarelo de Oxum é presente nos grãos de areia que
cingem o rio, frutificando brotos por onde passa. Ainda assim, o céu
é notívago e mostra a capacidade do brilho romper a escuridão.
Interessante
ressaltar que a Estrela sobreveio à Torre, sinônimo de ruptura,
perda ou dor. É esperança e acolhimento se manifestando, nossa
essência benevolente que sobrevive à tragédia, a sorte de ter
reencontrado o colo e o seio do amor incondicional do destino na
forma de uma mãe/mulher aconchegante e hospitaleira.
Como astro, sabemos
que antigamente o planeta Vênus era conhecido como estrela da manhã.
Tudo se intercala quando identificamos que esse planeta, interpretado
como estrela e tão fêmeo é, também, Afrodite, a deusa da beleza e
do amor, assim como nossa mãe Oxum. Sabe-se através de diversos
itans contados ao longo da tradição oral e, hoje em dia, escrito,
que Oxum sempre foi a menina mais bela do panteão africano.
A
FORÇA – IANSÃ
Consorte de Xangô
e Ogum, a justiça e a lei, Iansã é a personificação da força
guerreira. Seu arquétipo sempre nos remete a uma mulher destemida,
ou seja, completamente isenta de fobias, sempre determinada e
impetuosa, regendo intensamente a força da tempestade, ventania,
raios e trovões, de forma energética e arrojada. É uma mulher que
domina a natureza e a tem sob seu controle, sem em nenhum momento se
mostrar como submissa ou subserviente.
Da mesma maneira, o
arcano XI de nosso tarot performa energia congênere ao ser ilustrado
pela mulher que doma o leão, segurando suas mandíbulas de modo a
submetê-lo, de forma serena e posicionada em pé com tranquilidade.
Talvez, o grande lampejo feminino na carta da força é o mesmo que
Iansã esclarece: a força bestial e inferior não é dominada de
outra forma senão com sua pulsão contrária, a calmaria, a
segurança e o domínio pacífico da inferioridade.
Iansã – a Força – tem a coragem sob suas mãos de forma
despreocupada e impassível, sob o símbolo do leão, imagem que
carrega a idéia da besta voraz, os instintos violentos contidos em
cada ser humano. Isso não significa que Iansã, ou a Força, seja
flácida, frouxa, apática ou indolente. É o exato oposto: o
equilíbrio das duas medidas aparentemente opostas (pacifismo e ação)
resulta em positividade, movimento, direcionamento e evolução.
A energia leonina e
solar costuma nos aludir a um lado masculino da psique, da mesma
forma que contrariamente a lua nos alude ao feminino. Esse rompante
tem seu lado positivo, oposto à bestialidade, como tudo que está
contido na dualidade. É a criação da luz através da combustão,
faísca que se transforma em rojão rompendo a escuridão. Em suma, é
a energia feminina em perfeita consonância com a determinação
somada a um resultado, ou seja, a Força em si.
A
PAPISA/SACERDOTISA – NANÃ
A sabedoria
internalizada e intuitiva que promove alterações internas cujo
domínio está sob o arcano da Papisa só poderia ser integrada e
caber na figura de Nanã, a mais velha e sábia de todas as yabás.
Esse arquétipo é muito mais sensível às forças religiosas e
espirituais, afastando-se mais do concreto regido pela
Imperatriz/Yemanjá.
Nesse momento, as
forças psíquicas femininas estão voltadas para o sagrado e para o
domínio dos mundos além do material, os conhecimentos a respeito da
vida e da morte e das dimensões internas do ser. A paciência, a
observação e a sapiência atemporal que penetra o além e o antes
estão contidas Nela.
Símbolo de
iniciação e revelação mística, Nanã é a senhora do barro, das
profundezas lamacentas e das águas ancestrais onde estão escondidos
os mistérios da criação, sustentação e destruição que regem o
universo. Como a Papisa, carrega em si a bagagem da gnose, da piedade
dos anciãos iluminados e da santidade. Seu terreno de atuação é
intuitivo, mesclando a completa instrução com a mais sincera
humildade. O entendimento e a compreensão adquiridos nessa faceta da
jornada penetram um ângulo de beatitude e bem-aventurança com a
clariaudiência da voz interior mais íntima.
Nanã é o estanque
da fertilidade, a menopausa feminina, que representa a superação da
fase sexual e reprodutiva para o recolhimento ascético rodeado pela
experiência. Essa fase é a nobre mulher coroada de Marselha,
vestida como majestade e sob a qual repousa um livro aberto cujo
conhecimento não está escuso, ainda que sob seu poder.
CONCLUSÃO
Os elementos
arquetípicos presentes no tarot de Marselha não encontram
dificuldades para recepcionar as energias femininas das orixás do
panteão africano conhecidas como yabás. Muitas características em
comum permeiam a jornada da humanidade independentemente da
representação material imagética que se façam delas. Nesse caso,
defendemos a ideia de que o inconsciente coletivo se manifesta nas
culturas de formas diferentes mas que ao mesmo tempo são paralelas e
similares. Assim, podemos concluir que as forças convergem para um
mesmo entendimento e integração da psique, através dos insights
que nos levam a progredir no caminho da individuação como seres em
evolução.
REFERÊNCIAS
http://colegiodeumbanda.com.br/site/orixas/
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